Desta vez a aventura
levou-nos a percorrer a grande rota 11 que liga Santiago do Cacém ao cabo São
Vicente. Fiz na companhia de quatro amigos em BTT e em autonomia. A dormir em
hotéis de estrelas infinitas, a tomar banho em barragens e sistemas de rega e muitas
refeições nos melhores restaurantes gourmet. A grande rota 11, designada por os
caminhos históricos da costa Vicentina, percorre as principais vilas e aldeias
num itinerário rural com vários séculos de história. Constituído
maioritariamente por caminhos rurais, trata-se de uma clássica Grande Rota
(GR), totalmente percorrível a pé e de BTT, com troços de montado, serra,
vales, rios e ribeiras, numa viagem pelo tempo, pela cultura local e pelos
trilhos da natureza com um total de 220 km.
Na primeira etapa fizemos cerca de 50 km. Saímos de Santiago
do Cacém, cidade com fortes ligações às peregrinações a Santiago de Compostela.
É nesta cidade que se inicia esta travessia ao longo do Sw de Portugal. Por
aqui passam desde a Idade Média peregrinos oriundos do Promontorium Sacrum, o
destino mítico desta viagem histórica que agora se recupera. Acabámos na serra
de São Luís. Este troço é dominado pelo sobreiro, árvore emblemática do Alentejo.
Sobre ele afirmou Vieira Natividade, notável silvicultor português: “nenhuma
outra árvore dá tanto exigindo tão pouco”.
A primeira paragem
fez-se em Vele seco para reabastecer. Vale seco é uma pequena aldeia, apenas
com um café/mercearia e meia dúzia de casas. Ao aproximarmo-nos da aldeia
passamos junto a pequenas propriedades agrícolas, contactando de perto com o
ritmo da vida no campo e as pessoas que aqui vivem. Este é um Alentejo puro,
por vezes solitário, onde vale a pena parar no café para um dedo de conversa e
muita sabedoria, como foi o caso de um homem que estava ali sentado e que no
meio de muitas histórias, disse-nos que já tinha vivido no stress da cidade da
Amadora.
A segunda paragem foi na inevitável barragem de Campilhas. A
Barragem de Campilhas é um local ideal para um mergulho refrescante com
paisagens fantásticas.
O terceiro troço do dia foi feito entre a barragem e o Cercal
do Alentejo. Este é o percurso mais árido da Rota Vicentina, através de um
Alentejo agrícola e marcadamente rural, onde se sente, apesar da proximidade da
costa, os cheiros e a força do verdadeiro interior.
No Cercal do Alentejo parámos para reabastecer, mas como queríamos
continuar para fazer mais uns quilómetros, decidimos comprar alimentos para o
jantar, pois sabíamos que não tínhamos tempo para chegar a São Luís e que provavelmente
ficaríamos num qualquer lugar no meio da serra.
Depois das compras feitas iniciamos o percurso sem destino. Este
percurso é o mais montanhoso da Rota Vicentina, um percurso exigente em termos
físicos, com subidas longas em terrenos duros e irregulares, mas em que se tem
a oportunidade de apreciar vistas deslumbrantes sobre a planície e o Atlântico.
Estávamos na dúvida de onde pernoitar, mas depois de
encontrarmos um sistema de rega, não hesitamos. Estávamos entre o Cercal do
Alentejo e São Luís no meio do nada, num local fantástico da serra, em pura comunhão
com a natureza, com condições para tomar um banhinho e umas ruinas para
montarmos o restaurante gourmet. Ficamos todos de acordo e lá fizemos o chek-in
num dos hotéis com mais estrelas em que fiquei em toda a minha vida.
No segundo dia, iniciamos a resto do percurso até São Luís e
a coisa ia correndo mal. No dia anterior não compramos água suficiente e como o
percurso até São Luís foi exigente, ficamos sem água e particamente sem
alimentos no meio da serra. Foi aqui que sentimos o isolamento e a falta de infraestruturas
da rota. Tem que se ter muito cuidado com estes pormenores, porque o que torna
esta rota singular e muito bonita, num constante isolamento e sempre em
contacto com a natureza, também nos pode levar a situações de risco.
Claro que quando chegamos a São Luís fatigados e quase desidratados,
no primeiro café que encontramos parecíamos uns alarves a comer. Nunca uma
refeição me sobe tão bem.
Depois de reconfortados e reabastecidos, seguimos para o
percurso até Odemira. Esta é a etapa da água, onde se desvenda um Alentejo
diferente, verde e vibrante de vida, com pegos e ribeiras refrescantes, a
Ribeira do Torgal como protagonista e uma floresta viva, com abundância de
espécies valiosas que cobrem as margens das linhas de água como salgueiros,
amieiros ou freixos. Fazendo um desvio de 1 km do itinerário principal chegamos ao
Pego das Pias, um dos ex-líbris da região. Este é um local mágico, ideal para
uma pausa e um piquenique. Os pegos, troços da ribeira que permanecem com água
no Verão e que se encontra ao longo deste percurso, são essenciais à
sobrevivência do escalo-do-mira. Trata-se de uma espécie endémica da bacia do
Rio Mira, sendo este o único sítio do mundo onde podemos encontrar este pequeno
peixe.
Em Odemira fizemos outra paragem para abastecer de água num chafariz.
A vila de Odemira é o centro administrativo do vasto Concelho de Odemira, o
maior de Portugal. Esta centralidade tem origem na sua situação geográfica
particular.
Daqui iniciamos a etapa até S. Teotónio, Numa das etapas
mais acessíveis da Rota Vicentina, dada a natureza do caminho, sempre largo e
com um desnível pouco acentuado, pedalamos na companhia do rio Mira e da
ribeira de S. Teotónio, conhecendo de perto a beleza do interior deste concelho
que se estende entre a serra e o mar.
Quando chegámos a S. Teotónio, já tínhamos cerca de 60 km
nas pernas com troços difíceis. Sentíamo-nos cansados, mas queríamos chegar a
Odeceixe para ficar no parque de campismo e assim podermos tomar um merecido
banho. Decidimos então iniciar o percurso. Um percurso memorável, em que percorremos
trilhos inóspitos, cobertos de vegetação autóctone e bem preservada, descer a
vales fundos e subir de novo às alturas da serra, apreciando a vista sobre o
casario de Odeceixe e o mar. No final tínhamos o Algarve à vista e estávamos mais
mortos que vivos, mas de alma cheia.
No dia seguinte partimos do parque de campismo de Odeceixe
com destino a Aljezur. À saída de Odeceixe e logo para começar bem tivemos de
subir ao centenário moinho de vento, onde foi imperativo fazer uma pausa para
recuperar e apreciar a vista. Daqui vê-se toda a vila, a extensa várzea e a
ribeira de Seixe que segue o seu rumo até ao mar.
Depois entrámos junto às levadas do Sudoeste, ao longo do
canal de rega do Mira, numa paisagem de vistas desafogadas, com a serra a
nascente e o Atlântico a poente. Aqui tivemos que ser prudentes, os trilhos são
junto às margens e com troços muito estreitos. Qualquer desequilíbrio poder-nos-ia
fazer cair para dentro do canal que ainda tem uma corrente forte.
Mas nem isso nos tirou a vontade de tomarmos um banhinho e
só não o fizemos porque o tempo não estava convidativo. Tínhamos pensado em
faze-lo junto a uma represa e assim só seriamos arrastados até à represa,
conseguindo depois sair pela mesma.
Em Aljezur fizemos a primeira pausa, numa Vila pitoresca com
as suas ruas labirínticas e com um lindíssimo percurso histórico e cultural.
Daqui partimos para a Bordeira, num percurso de um sobe e
desce constante e muito desgastante. Foi também neste percurso que apanhámos o
primeiro grande aguaceiro. A sorte foi encontrar uma caravana com um toldo na praia do Canal que antecede uma descida vertiginosa . Tínhamos
como destino a Carrapateira, onde pensámos em pernoitar. Pensado em alugar uma
casa porque sabíamos que nessa noite existiam previsões de tempestade, mas
quando chegamos à Carrapateira, estivemos quase para acampar na praia, pela
beleza natural que esta representa. Depois acabamos por ir mesmo para uma casa
alugada e ainda bem que o fizemos. Pelas quatro da madrugada caiu uma daquelas
tempestades, que se estivéssemos acampados nem as cuecas do corpo se tinham
aproveitado. Este percurso confirma o lado mais agreste e inacessível
desta região costeira.
O último dia amanheceu chuvoso e sombrio com ar de
tempestade. O que nos levou a questionar como seria difícil a progressão com
estas condições. Mas por volta das nove o tempo começou a abrir e decidimos
então iniciar a etapa até Vila do Bispo. São paisagens em que a serra se
derrama até ao litoral, indo morrer à praia, transmitindo sensações de
amenidade e serenidade, mas também de vigor e magnificência.
Em Vila do Bispo fizemos a ultima paragem para reabastecer
antes de iniciarmos o percurso até ao cabo S. Vicente.
Este é o percurso em direcção ao ponto mais a Sudoeste da
Europa, um local mágico onde ecoam as vozes de peregrinos e navegadores.
Falésias monumentais, panorâmicas arrebatadoras sobre a costa e um palco
privilegiado para o esplendor da mãe natureza.
Daqui ainda partimos para Lagos, onde fizemos mais 40 km
para poder apanhar o autocarro de regresso. Fomos acolhidos pelos tios dos irmãos
Perdigão, a quem fico eternamente agradecido pela maneira como nos receberam,
dispondo de todo para o nosso bem-estar. Bem hajam.
Depois de uma aventura inesquecível de quatro dias e cerca
de 260 km, não podia deixar de agradecer aos meus companheiros de viagem. Vocês
são os MAIORES. Mas também a todos aqueles que trabalham em prólogo deste projeto
da rota Vicentina, afinal são eles que proporcionam estas aventuras riquíssimas
a nível pessoal cultural e histórico. Pena é não estar mais desenvolvida a nível
infraestrutural, mas aí a culpa é do Tuga que ainda não deu o passo à frente
que a maioria dos Europeus já deu. Para a maioria dos Europeus já não lhes
interessa o consumismo ou o carro como estatuto social. Interessa-lhes o
contacto com a natureza, percorrerem grandes rotas a pé ou de bicicleta. Meus
amigos se quiserem conhecer o vosso País riquíssimo em beleza natural cultural
e histórico, deixem o carro em casa e passeiem a pé ou de bicicleta. Nenhum
carro vos leva onde podem ir a pé ou de bicicleta e podem crer que vão encontrar
recantos magníficos, ajudando estes projetos a desenvolverem-se e a criar riqueza
local e nacional.
Fonte : http://www.rotavicentina.com/