Quando há cerca de dez anos
visitei pela primeira vez Santiago de Compostela e vi na altura os peregrinos a
chegarem à Praça de Obradoiro, estava longe de pensar que um dia seria eu a lá
chegar. Longe também estava de saber o que aqueles peregrinos estavam a sentir,
mas foi nesse dia que algo me chamou e despertou-me a curiosidade para aquela
peregrinação. Independentemente das razões que nos levam a querer fazer esta
peregrinação e conhecer os caminhos, que podem ser várias, desde a aventura até
à crença religiosa, o certo é que eu senti que algo de grandioso me chamava
para fazer os caminhos.
Desde então, fui pesquisando e
sabendo mais sobre o assunto e comecei-me a aperceber, que era mais do que uma
peregrinação, era algo grandioso a nível pessoal e emocional.
Em Outubro de 2011 o meu filho
Ricardo fez os 800Km do Caminho Francês em bicicleta. A sua partilha foi o
empurrão para decidir e programar as minhas peregrinação pelos caminhos e depois de os fazer anteriormente sempre em bicicleta, em 2014 foi a vez de dar a conhecer os caminhos à minha esposa e de os fazer pela primeira vez a pé.
Para 2014 programei com a minha
mais que todo (Manuela), uma peregrinação a pé no caminho Francês de Santiago a
começar no O Cebreiro, com cerca de 160Km até Santiago e dividido em oito
etapas, para o fazermos nas calmas e contemplar o caminho.
Meses antes começamos a preparação com umas caminhadas. Tínhamos que nos habituar a caminhar vários quilómetros e
sobretudo habituar-nos ao calçado que é fundamental assim como às meias, que
devem de ser de grande qualidade, não dar importância a estes dois pormenores são um erro estratégico,
potenciais de problemas durante a caminhada.
Nos últimos quinze dias antes do
começo, preparamos todos os pormenores, pesquisámos a distância das etapas, os
albergues disponíveis e as distâncias entre eles, os serviços disponíveis em
cada localidade e as viagens de ida e regresso, mas neste caso sem previsão de
chegada, não queríamos estar dependentes desse factor.
No dia anterior preparamos as
mochilas e os nervos miudinhos começaram a aparecer. Afinal o desconhecido e
sairmos das zonas de conforto dá-nos um nó na barriga.
A preparação da mochila foi dos
pormenores que nos deu mais trabalho, pois sabíamos que o ideal é transportar
cerca de 10% do nosso peso corporal. Eu peso 60kg e a Manuela 50Kg, meter
dentro de uma mochila menos de 6/5 Kg é uma tarefa que se revelou muito
difícil, achamos sempre que há algo que nos vai fazer falta, quando afinal esse
é outro erro estratégico, carregar a mochila com coisas supérfluas, cada grama
a mais vai-se revelar quilos a pesar-nos nas costas ao fim de muitos
quilómetros. O caminho ensina-nos que não precisamos de quase nada para sermos
felizes e conseguir caminhar todos os dias em boas condições. A experiência da
última vez que fiz o caminho, neste caso ajudo-nos a conseguir levar mesmo só o
essencial, ficando com as mochilas dentro do peso previsto. Mas para o
conseguir é essencial que a mochila não seja muito grande, pois quanto maior é,
mais coisas conseguimos meter lá dentro e aumentar exponencialmente o peso.
No dia 2 de Julho partimos de
autocarro de Lisboa para Santiago, uma viagem de 9 horas, saturante e maçadora.
Chegamos a Santiago por volta das 18 horas e fomos logo à procura do albergue
que tínhamos previsto ficar. O Albergue de São Lázaro, já no limite da cidade. Depois de chegarmos ao albergue, instalámo-nos, sendo para a Manuela a primeira experiência a ficar num albergue e adaptar-se a todo aquele ambiente próprio dos albergues. Coisa que fez sem dificuldade e até parecia que já o tinha feito anteriormente. O resto do dia foi passado com um pequeno passeio e jantar.
No dia seguinte partimos às 8
horas de autocarro para O Cebreiro, já com a viagem previamente comprada e com
destino a Pedrafita do Cebreiro, que fica a cerca de 5Km do Albergue do O
Cebreiro. Pedrafita fica numa cordilheira montanhosa do lado oposto do caminho
Francês. Chegamos por volta das 12 horas e neste dia só fizemos os 5Km até ao
Albergue. Como já tínhamos pesquisado anteriormente, sabíamos que existia um
trilho até ao Albergue e percorremos estes 5km por esse trilho devidamente
marcado para o efeito, mas duro por causa do desnível em subida acumulada. No
entanto vimos peregrinos que saíram do mesmo autocarro a irem pela estrada,
talvez seja mais fácil, mas de certeza que não desfrutaram das paisagens e
natureza que este trilho nos ofereceu. Passámos o resto
do dia a explorar esta aldeia de origem pré-histórica situada a cerca de 1300 m
de altitude, entre as serras de O Courel e Os Ancares. Uma aldeia lindíssima e
com paisagens de cortar a respiração, aliás foi o local mais bonito de todo o
caminho.
Dia 4 foi o dia da primeira etapa
a sério, com 21 km de O Cebreiro a Triacastela. Quase toda ela feita acima dos
1000m. Por alguma razão esta parte do caminho tem a alcunha de “milipico”. Aqui
as forças da gravidade são postas em causa em relação ao corpo humano. É mais
fácil subir do que descer. A força nas pernas e a pressão que se faz nos pés
para ir constantemente a travar nas descidas, provoca um desgaste e dores muito
piores do que a subir, onde com uma passada constante e um correto exercício
respiratório, faz-se com menos dificuldade. Em compensação tivemos uma etapa de
paisagens lindas e com o nevoeiro assente nos vales, proporcionou-nos momentos
de rara beleza natural. Chegamos a Triacastela por volta das 13h. Hora da
abertura dos albergues, este albergue foi dos mais bonitos em que ficamos. Situado
num local com uma beleza natural magnifica. Foi aqui que ficámos a conhecer a
Laura e a Begoña, duas pessoas que depois deste dia tiveram uma importância
enorme para nós no resto do caminho.
No dia 5 fizemos uma etapa mais
curta de 19Km entre Triacastela e Sarria. No entanto tão difícil como a
anterior, pois toda ela é feita no mesmo cenário montanhoso com grandes desníveis
de perfil, mas em compensação com trechos de bosques fantásticos. Chegamos a
Sarria novamente perto das 13H e depois de nos instalarmos no albergue, onde
mais uma vez voltámos a ficar com a Laura e a Begoña, fomos conhecer a cidade e
comer numa esplanada muito agradável à beira rio com direito a musica Celta ao
vivo. De salientar que em Sarria é de onde muitos peregrinos iniciam o caminho,
por estar a cerca de 100km de Santiago e ser esta a distância necessária para
se ter direito à Compostela.
Ao terceiro dia de caminhada,
quando nos levantámos por volta das 5 da manhã, tivemos uma surpresa. Chovia,
nada para que não estivéssemos preparados, afinal estávamos na Galiza e como de
uma maneira geral se sabe, na Galiza chover é normal até no Verão.
Preparámos-nos com corta-vento e calças impermeáveis, ao contrário da maioria
dos peregrinos que utilizavam muito as capas, coisa que achei proteger pouco. O
resto da etapa foi feita de baixo de chuva, mas mais uma vez as paisagens fazem
esquecer estas situações menos agradáveis. Esta etapa também teve a
característica de ser a que mais animais encontramos, o que tornou a etapa mais
agradável e fácil. Nesta etapa fizemos 22Km entre Sarria e Portomarín, onde ao
chegarmos encontramos uma procissão. Depois de nos termos instalado no
albergue, fomos almoçar e visitar a Vila, que é muito bonita e acolhedora,
situa-se na margem direita do rio Minho, com uma Praça central lindíssima. No
regresso ao albergue encontrámos a Laura e a Begoña a almoçar numa explanada,
decidimos sentarmos-nos e trocar umas palavras. Palavras essas que se
transformaram numa conversa interessante com a partilha das nossas vidas, do
porque de estarmos ali, as emoções que estávamos a viver por estarmos a fazer o
caminho, as lágrimas os sorrisos os olhares começaram a ter outra dimensão. A
nós juntaram-se mais peregrinos que já nos conhecíamos de circunstância. O Joaquim,
Castelhano de 70 anos que fazia o caminho sozinho e queria muito chegar a
Santiago no dia previsto para depois poder ir visitar os netinhos. Um homem de
coragem e com uma história incrível de vida que a contou-nos ali de uma forma
emocionada, parecia que já nos conhecíamos há anos. A Letícia, uma Brasileira
que estava ali por uma promessa. Dividida entre o filho e o marido que tiveram
uma zanga e outros que passaram por ali numa conversa para o resto da tarde. No
entanto a Laura e a Begoña que faziam o caminho juntas, transpiravam e
contagiavam amizade. Dizem os cientistas que a amizade que se cria entre as
pessoas pode ser genético, se é ou não, não sei, sei que as trouxe no coração.
Foi aqui que percebi o que ainda emocionalmente não conhecia do caminho, esta
parte tão humana de querer conhecer o nosso semelhante de estabelecer relações
de amizade e compartilha, a parte do caminho mais importante e por isso hoje
estou ainda mais de acordo com aqueles que dizem que o caminho faz-se
caminhando, só assim ficamos a conhecer tudo o que o caminho nos pode oferecer.
Quando regressamos ao albergue verificámos que por coincidência as nossas
companheiras de beliche eram as de sempre, nós em baixo e elas por cima.
No dia 7 tínhamos programada uma
etapa de 25Km entre Portomarín e Palas de Rei, a etapa mais desinteressante por
ser feita em grande parte junta a estradas. O amanhecer neste dia foi esplêndido com o rio Minho como cenário natural. Neste dia começou-se a sentir o cansaço
acumulado e as dores começaram a aparecer, principalmente nos joelhos da
Manuela e nos meus pés. Quando chegámos a Palas de Rei e depois de nos
instalarmos no albergue, fomos novamente almoçar e fazer as nossas compras diárias de comer para o dia seguinte. Neste dia o trajecto teve que ser o mais curto
possível, pois o cansaço e as dores faziam-me parecer que um degrau de escadas
era o Monte Evereste.
Dia 8 foi dia da maior etapa com 29Km entre Palas de Rei e Arzúa. Esta etapa é conhecida como 'rompepiernas' os 29 Km equivalem a 40Km em terreno plano, as continuas subidas e descidas tornam o percurso muito difícil. Em compensação é uma das etapas com mais percurso em bosques e os bosques na Galiza são de uma beleza incomparável. Chegámos arrasados e ficámos sem os nossos amigos. Uns porque não chegaram a Arzúa e ficaram em albergues antes da Vila e outros em outros albergues, isto porque não conseguimos arranjar lugar no albergue municipal e tivemos que optar por um privado, que foi o único em que ficamos em todo o caminho e ainda por cima não nos agradou muito.
No dia 9 a etapa foi entre Arzúa
e Pedrouzo com 19km, uma etapa mais curta, mas que estávamos a precisar para
recuperar do dia anterior. A primeira parte foi muito bonita com o sol a entrar
nos bosques e a proporcionar-nos panoramas espectaculares. A segunda já foi um
bocadinho mais chata por causa da presença constante de uma estrada nacional.
Em Pedrouzo reencontrámos os amigos na chegada ao albergue, foi um momento de
emoção por sabermos que tínhamos todos chegado ali e só nos faltava a ultima
etapa até Santiago. Aqui encontrámos uma igreja com um altar dos mais bonitos que vi.
No último dia a caminhada começou
mais cedo do que o habitual, pois queríamos percorrer os últimos 20Km até
Santiago, por forma a chegarmos a tempo da missa dos peregrinos. Saímos do
albergue ainda de noite e ao entrarmos nos bosques encontramos um peregrino
Madrileno perdido, que nos pediu companhia. Acompanhou-nos até ao amanhecer,
depois com a sua juventude dos 17 anos, agradeceu-nos e acelerou o passo.
Viemos depois a encontrá-lo em Santiago e ficámos satisfeitos por saber que
tinha corrido tudo bem.
A caminhada nesta última etapa torna-se mais serena,
talvez pelo medo de estarmos a chegar ao fim, de afinal não querermos acabar.
Os trilhos levam-nos até ao Monte do Gozo. De onde se avista pela primeira vez
Santiago de Compostela.
As emoções começam a ficar à flor da pele, caminha-se
praticamente em silêncio e meditação, como aliás se faz quase todo o caminho,
mas agora é mais notório. Faz-se os últimos quilómetros pelas ruas da cidade,
terminando no pé da fachada barroca da catedral. O Obradoiro é o fim e o
começo.
Depois, depois foi o reencontro
com todos aqueles que nos cruzámos no caminho e cada reencontro foi uma
explosão de emoções de abraços de risos e satisfação. Ficamos ali na Praça à
espera de os ver chegar para partilhar a alegria de todos termos conseguido. Até
os mais reservados sorriram-nos de orelha a orelha. Com os mais chegados
combinamos uma jantarada para comemorar e acabámos numa queimada Galega
espectacular. A eles e principalmente à Laura e à Beboña o meu eterno obrigado
por tudo e por terem ajudado a que o meu caminho fosse especial. Já mais o esquecerei.
À minha querida Manuela, nem
tenho palavras para expressar o tão orgulhoso e grato estou, por me ter
acompanhado nesta aventura. Dos dois foi sem dúvida a mais forte e resistente
revelou o que eu já sei há muito tempo, que é uma grande mulher. (AMO-TE). Afinal o nosso caminho de Santiago foi o que tem sido o nosso caminho na vida, feito com amor.
Do caminho trago algo de
grandioso e místico, que nos faz pensar em quem fomos em quem somos e em quem
queremos ser, foi uma experiência pessoal e emocional das mais enriquecedoras
que já vivi.
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